Uma década trascendendo fronteiras.

Sobre o trabalho de Gustavo da Liña

Os quadros de Gustavo da Liña transmitem acentuados traços novos assim como, outras características diferentes das que estamos atualmente acostumados a encontrar na arte contemporânea. Embora a forma da linguagem seja abstrata, eles causam uma impressão concreta e nítida. E, se em primeiro lugar parecem silenciosos, são, no entanto repletos de narrativa. Mesmo que eles tenham um efeito bidimensional, ultrapassam quase sempre a fronteira para o gênero escultórico e assim, aproximam se de maneira direta ao observador apesar da aparência singularmente estranha que eles possúem. A arte deste jovem pintor surge da história e do presente; é mediadora entre a tradição e a inovação; implica laços e desprendimento; alcança um equilíbrio entre o espírito e a matéria. Cada trabalho é, por assim dizer, centrado em si; porém ao mesmo tempo, está ligado à um longo processo por vezes veemente de concepção artística. As bases do seu trabalho carregam até hoje, a estampa de sua origem, e as características de artistas e da arte contemporânea mundial.

Gustavo da Liña é um fronteiriço, e desde a sua infância vive com as experiências de atravessar fronteiras e de sofrer delimitações. Crescido na fronteira entre o Uruguay e o Brasil, ele participou da cultura comum entre os dois países e fez do "olhar de maneira diferente", um dos fundamentos em sua experiência de mundo. Com a sorte de uma tal infância, reúnem se nele ainda a saudade distante e o amor à terra natal, o gosto de viajar e a volta ao lar, o correr o mundo e o sentido familiar, o espírito aberto e a reserva. Gustavo da Liña vive como sul americano na Alemanha e, por conseguinte, participa no desenvolvimento e nas experiências da globalização da arte. Também a mobilidade geral dos artistas no mundo inteiro, num anseio de viajar em busca de novas impressões teve sobre ele uma influência produtiva. A inquietação criativa que o levou a Madagascar, entre outros lugares, faz com que ele participe na nomadização da arte.

Sua arte tem efeilo de concentração; é carregada de espiritualidade, e também revela um alto grau de exigência em sua técnica. Gustavo da Liña tem um esboço que não é intelectualmente sobrecarregado, e em meio à esses parâmetros ele prossogue de forma meramente empírica. A experiência sensória e táclil no uso das cores e do material, assim como a estranheza e a familiaridade do papel, estimulam inteiramente seu processo criativo. O pintar e o moldar nesse caminho em busca da forma, parecem fluir um no outro, e o experimentar é parte que nunca perde importância no seu processo de desenvolvimento.

Desenvolvimento do trabalho

Gustavo da Liña é um narrador que não necessita de uma torrente de palavras para transmitir uma estória. Com seus símbolos ele narra de tal maneira que o observador não só entende, como este pode continuar pensando e assim desenvolvendo novas idéias. Em seus trabalhos do início dos anos 90 espelha se esse princípio de fabular, assim como a exigência do pensar mais além do quadro em si.

"Ninho de pássaro", 1990 (p. 61)* com suas pinceladas espontâneas, seu colorido de fundo luminioso e a abstraída silhueta de um pássaro, sugere imediatamente um arbusto, hora do dia e proteção, sem de modo algum querer iludir o idílio ou a realidade. Também "Cabeça", 1990 (p. 55)* ou "Pintura rupestre", 1990 (p. 56)* que lembram Altamira, Lascaux ou outros sítios antigos com pinturas humanas, sequem essa tendência artística de alusão tão precisa, que por sua vez desencadeia imediatamente um mundo de imagens no observador. Junto à vestígios de pintura ornamental, em "Tríptico", 1990 (p. 57)*, uma forte e emoldurada pintura de reduzido aparato formal ganha efeito, ainda sem entrar na estrutura do papel. Aquí já se manifestam a solenidade e formas das séries de quadros que virão. Após um belo entreato como "Lua", 1991 (p. 53)*, criado numa folha impetuosa e rica em acentos, na qual pode ser percebido algo da fascinação do turbilhão de cores, sequem se quadros onde uma larga faixa pintada úne se à informal fúria pictórica, que como uma lâmina flutuante pousa sobre o seu fundo.

A patir de agora, levando únicamente o nome dos pigmentos que carregam, esses quadros (1991, p. 48, 51)* estão em perfeita sintonia com seu suporte, cujas elevações e profundidades, sulcos e lisuras, e estrutura calma ou agitada são atendidas, acentuadas e prumadas. Desde então, a superfície colorida e o fundo do papel formam uma unidade inseparável, tendo se a impressão que Gustavo da Liña simplesmente libertou o colorido, tornando o visível no quadro. Ganhando sempre mais importância, o jogo de troca entre a intensidade luminosa e o escuro cheio de mistério adquire aqui, efeito. As afinadas soluções do quadro falam de uma espontânea camada de cores, que em parte faz esquecer os percursos minuciosos das rugas no papel.

Embora o papel Antaimoro já seja suficiente estruturado, com as estampas de "Barra", "Geometria" e "Quadro silencioso", 1992 (p. 43 3 47)*, esses quadros recebem formas tácieis adicionais que reforçam a tridimensionalidade do papel, acentuando ainda as horizontais e verticais, ou a concentração. 0 domínio da pintura emoldurada (p. 42)*, o traçado de veias no quadro (p. 41)*, e a alusão a lembranças reais como em " Projeção arbórea ", 1994 (p. 39)* únem se, por sua vez, a cores alegres ou a iluminados ícones místicos. O círculo, um motivo central de suas estampas, encontra se muitas vezes verticalmente ancorado no quadro através de barras coloridas. Isto, conduz na linguagem dos quadros de Gustavo da Liña a um crescente silêncio, levando o obervador ao sossego apesar de sua superfície finamente estruturada. Os trabalhos carregam uma força quase litúrgica, cheios de silenciosa solenidade sem cair em comoção superficial. O emprego de símbolos como o círculo em "Olho d’agua'', 1994 e "Olho d’agua verde", 1994 (p. 35 e 33)* ou o quadrado (p. 37)*, é tolalmente não dogmático e independente do microcosmo do papel. O espectro abarcado vai de formas claras à reduzidas, passando por símbolos minimalistas, che¬gando à resultados quase informais. Os processos de busca pictórica do artista são como expedições num mar de cores, onde encontram se pranchões, tabuões e argolas que ele usa para segurar se. Apesar do confronto com as formas mais moderadas, encontra se nas obras "Grafismo", 1994 (p. 30)* ou "Sinais", 1996 (p. 31)* desvios ornamentais, orientados num mundo de filigranas construído assimétricamente.

Silêncio eloqüente

Subseqüentemente, surgem trabalhos que representam a soma de todos os elementos até agora encontrados pelo artista. A acentuada moldura interior pintada no quadro, com largura diferente, cria de certo modo um quadro dentro do outro, que em sua unidade de cor básica do todo, no entanto, afina se no conjunto; seu traçado estrutural de delicadas partes sobrepassa muitas vezes essa moldura até apareçer nas beiras, em grandes porções, de maneira organizada ou luminosa. As formas estampadas, sobretudo círculos, focalizam a atenção para o meio dando ao quadro um centro formal, material, e espiritual que nem sempre coincidem com o centro geomêtrico. A execução dos quadros, seja na horizontal ou na vertical, ou tendendo ao quadrado, depende contudo, do tamanho da folha de papel Antaimoro, porém, é determinada por antemão, pela intenção do quadro e através da focalização dos componentes materiais, estruturais e espirituais.

Renunciando à qualquer intenção ornamental, são os quadros chamados "Silêncio em movimenlo", 1995/6 (p. 5, 13, 25 a 27)* que se seguem aos "Quadros silenciosos" de 1992/3 (p. 9, 40 a 43)*, uma exteriorização formal moderada, de uma pintura de sensível exploração do papel e do caráter do seu relevo. Eles usufruem de maneira completa as possibilidades de diferenciação individual contidas nas cores e valores, que são ao mesmo tempo, algo como sinais dinâmicos. Gustavo da Liña gosta de trabalhar em sequências que freqüentemente estendem se de um até três anos, com processos de elaboração de estreito parentesco entre si, e que vão acontecendo até encontrar soluções provisórias ou sua finalização. Ele circunda campos formais e de conteúdos, para com isso, de maneira nenhuma perder o potencial de um tema enquanto busca soluçõess definitivas. "Labirintos cretenses" (p. 18 a 23)*, nos anos 1997/8, constituem uma parte importante do seu trabalho. Em sua maioria, aplicados em cores claras ou em ouro, de forma e traçado invariáveis e de múltiplas correspondências de cor, parecem ora flutuar sobre o fundo, ora naufragar nele; ora jazer, ora iluminar por trás dele. Delicado ou firme, opaco ou luminoso, saliente ou retraído, o mito de orientação ou desorientação, de ameaça, de coragem e sobrovivência imposto desde a remota Antigüidade, cobrindo a Idade Média e chegando até os tempos de hoje, ganha nos quadros de Gustavo da Liña uma força artística mística impressionante. Cifradas mas legíveis, plenas de símbolos mas não patéticas, e delineadas num contexto espacial, assim são essas abreviaturas atemporais, portadoras de um efeito capaz de criar quadros meditativos. Nos trabalhos mais recentes o artista recorre a " Barras", 1992 (p. 46 e 47)* e desenvolve ainda mais os princípios formais encontrados naquela época, de maneira simples e ao mesmo tempo produtiva. Não sómente a multiplicação das partes formais, não apenas a armação colorida, e nem só a peculiar e eficaz força tridimensional de sua aparência minimalizada, porém, a fusão de todos os elementos do quadro numa espiritualidade pictórica realizada nele, constituem a mais alta exigência dessa linguagem artística contemporânea. Sabidamente, nunca são os objetos, lugares ou figuras do quadro, nem os materiais do trabalho, como tampouco as boas intenções que fazem um processo criativo resultar em arte; mas sim a força experimental que encontra o novo; uma força de poucos. Aquí, nós a encontramos.

 

 

Prof. Dr. Frank Günter Zehnder, 1999

*Obras no catálogo de Gustavo da Liña, ISBN 3-00-005199-6